Inventário de Percursos Banais
Inventário de Percursos Banais, de Clara Benfatti, consiste de uma série de vestígios, registrados em forma de fotografias, textos e desenhos, que são o resultado de percursos realizados pela artista na cidade do Porto, em Portugal. Para realizar tais caminhadas, a artista pediu por diretrizes de amigos, que enviaram suas ideias via e-mail. As instruções, tão variadas quanto andar de costas, seguir pessoas vestindo roupas de cores específicas, coletar pedregulhos no leito do rio e atribuir-lhes um nome, entre outras, revelam preocupações e visões de mundo de seus proponentes. No entanto, mais do que isso, revelam maneiras dialéticas de perceber a cidade.
A reunião de material proposta por Benfatti — um aglomerado de linhas e cores — gradativamente constrói um mapa inédito do Porto. O resultado responde à estética delicada da artista, e contextualiza seu material em uma exposição de cores claras, reunindo desenhos limpos e transparências de papel manteiga. Inventário…, assim, propõe que a cidade seja percebida enquanto percursos, mas também como um encadeamento de verbos de ação. Muitas proposições requerem austeridade, seja pela resistência física ou pela interação com estranhos, mas outras exigem um olhar sensível à poesia da vida cotidiana.
A imagem de alguém que peregrina sugere um sentimento estrangeiro no meio em que se vive, buscando em seu trajeto uma espécie de cidade ideal. Walter Benjamin, ao citar Baudelaire, discorreu sobre a figura do flâneur parisiense, um personagem cujo ato de caminhar correspondia ao de apreensão e representação do panorama urbano. A figura do flâneur diz respeito à experiência do sujeito moderno no início do capitalismo, que se depara com uma Paris desfigurada e reconstruída, capaz de alienar os moradores em sua própria cidade. Benfatti, natural de Paris e recentemente imigrada para o Porto vinda de São Paulo, parece possuir um interesse autobiográfico nessa figura de transição, que se reencontra através da observação de seu contexto.
De acordo com a filósofa Maria João Cantinho, “Benjamin demonstra como, em consequência dessa crise da experiência, o flâneur torna-se o retrato do intelectual/artista que precisa refletir sobre sua própria situação histórica para que possa compreender e tentar redefinir seu papel e sua atuação sociais”. As diferentes proposições em Inventário… desconstroem e reorganizam o mundo, dissolvendo conexões lógicas e revelando correspondências invisíveis. A obra, uma amálgama de pequenas construções, portanto, é o sintoma de uma construção da cidade através da experiência, interconectando diferentes narrativas, sejam elas lineares ou circulares, cronológicas ou anacrônicas, concretas ou suscitadas pelo acaso.
Roger Valença, novembro 2019