A cidade que eu caminho só existe em sonho

  

Durante três dias de outubro de 1974, o escritor francês Georges Perec dedicou-se à observar, de dentro do Café Tabac, a Place Saint-Sulpice, em Paris, a fim de tentar registrar em sua escrita tudo o que seu olhar alcançava. Desse exercício de observação proposto pelo escritor, observamos uma necessidade de interrogar o cotidiano mais simples e básico, concedendo atenção à detalhes e cenas corriqueiras da cidade que eram imediatas a sua percepção.

Tal proposição descrita por Perec, em seu livro Tentativas de esgotar um lugar parisiense, são o ponto de partida de Clara Benfatti para a construção desta exposição. Aqui, vale observar que foi a partir dessa mudança de país, portanto de perspectiva, que a artista volta seu olhar para uma nova forma de relacionar-se com o espaço ao seu redor, alterando inclusive sua construção pictórica - antes muito focada em desenhos de observação e percepção da arquitetura e paisagem que circundavam os espaços de deslocamento da artista pela cidade de São Paulo.

Em A cidade que eu caminho só existe em sonho, Clara apresenta um conjunto de trabalhos audiovisuais baseados em um diário de instruções de percursos, que a artista solicitou a um grupo de pessoas, a partir de uma carta convite que solicitava ao convidado o envio de uma instrução ou regra para uma deriva sob a qual a artista desenvolveria pela cidade do Porto. Para além de construir uma narrativa visual, tais derivas capacitaram a perspectiva da artista a níveis mais detalhistas, o que Perec mais tarde descreveu em sua outra obra L'ifraordinnaire, cujo autor lança a proposta de se fundar uma antropologia do nós, aquele que, finalmente, falará de nós, que irá procurar em nós mesmos aquilo que há longo tempo foi pilhado dos outros.

Nessa linha de argumentação sobre o infra-ordinário, assim como Perec nos indaga "Como, então, nos darmos conta da nossa vida ordinária, da nossa rotina? Como interrogar nosso cotidiano? Como descrevê-lo?", em A cidade que eu caminho só existe em sonho, Clara busca traçar relações de apropriação de uma nova paisagem e cotidiano, como forma de pertencer a esse novo cenário. O simples exercício implementado por Georges Perec em sua escrita, de sentar-se e observar o ordinário do cotidiano, sem enredo ou finalidade, foi deslocado e reterritorializado em uma nova linguagem por Clara Benfatti.

 Dessa observação atenta ao seu caminhar, a artista registra percepções, que aqui são apresentadas em uma série de fotografias, um áudio e um guia de instruções. No filme, as imagens registradas por Clara vão se sucedendo a uma voz em off, de modo que texto e imagem passam a criar sincronias e incoincidências, a partir da sobreposição das camadas da leitura da artista sobre a cidade. Na tentativa de "descrever o resto: aquilo que geralmente não se nota, que passa despercebido, que não tem importância: o que se passa quando nada se passa, senão o tempo, as pessoas, os carros, as nuvens", a artista não nos apresenta somente sua tentativa reclamar seu pertencimento a esse novo território, mas também um registro de uma cidade em transformação, interpolando camadas de individualidade, subjetividade e viver em sociedade.

 

Carollina Lauriano, 2020