Outras cidades

O panorama que Clara Benfatti descortina em uma de suas principais séries, Cidades Brancas, provoca no observador sentimentos por vezes contraditórios. Se o intenso labor atestado por uma espécie de filigrana extensa, constituída à maneira de uma daquelas antigas visadas feitas por artistas-viajantes em pinturas ou por fotógrafos no alvorecer dessa linguagem, é objeto de admiração, em especial pelo traço apurado do desenho de dimensões generosas, também há um outro movimento.

Ao notarmos mais o trabalho, percebe-se que vai se formando um skyline típico das metrópoles contemporâneas, mais em sentido da congestão e de uma mobilidade impotente do que de uma urbe algo utópica e conciliadora, em que os signos urbanos _ muito explorados na história da arte pelos futuristas, por exemplo_ sejam indícios de uma modernidade apaziguadora. Assim, o palimpsesto ao qual nosso olhar é seduzido a assistir detidamente agrega dados informes e, por que não, monstruosos (basta um feriado, por exemplo, para o paulistano legitimar em corpo, fumaça, luzes e trânsito o que Godard, por exemplo, teria exagerado no retrato distópico de seu Alphaville, em 1965). “É que o território é um ‘palimpsesto’, escreve e volta a desenhar continuamente”1, alerta Anne Cauquelin em seu obrigatório A Invenção da Paisagem.

A habilidade da artista radicada em São Paulo está justamente em manejar esses vetores poéticos por vezes conflitantes, como a atração e a repulsa, a exibição ostensiva e a silenciosa introspecção, a artesania manual e a produção seriada, o público e o íntimo (privado e doméstico, por extensão). Benfatti é uma artista fincada na contemporaneidade e gosta de esgarçar contornos anteriormente determinados e mesclar abordagens, investigacões e linguagens. Assim, seu desenho ganha espaço quase forçadamente _ao mesmo tempo, com delicadeza, já que suas linhas e ângulos são diminutos _ e migra para o tridimensional, como se ela fosse a autora de uma escultura forjada no espaço físico, real, concreto e se espalhasse sem linearidade por seu entorno, sem corporeidade pelo ar, camuflando-se pelo território do não visto.

Ao mesmo tempo, a série de desenhos a retratar janelas, das mais diversas tipologias, em conjunto com o recorte A Silenciosa Fábula dos Objetos, dimensiona uma artista mais ligada a um habitar mínimo, essencial, pouco ruidoso. Esse estar menor no mundo liga a artista a vertentes da contemporaneidade mais evidentes pela ideia. Ao desenhar quase com obsessão as distintas configurações com as quais um elemento básico de uma casa se apresenta ao mundo, Benfatti parece tecer um elogio às diferentes personalidades, subjetividades e significações que o mundo do consumo não consegue suplantar. E, simultaneamente, apresentando tridimensionais em que camadas de materialidade tíbia se sobrepõem, gerando espaços instalados numa zona entre o concreto e o ficcional, outra vez a artista segue em direção ao conceito. “‘Devo’ ver. Este imperativo apresenta-se repentinamente, como um todo. No entanto, ele é constituído por mil camadas, justapostas, que até mesmo o historiador mais minucioso e o mais documentado não pode captar separadamente no pormenor da sua emergência” 2, argumenta Cauquelin. Os universos tão repletos de sobreposições de Benfatti, portanto, dizem muito sobre nossa necessidade de invenção das paisagens.

Mario Gioia, julho de 2015

  1. CAUQUELIN, Anne. A Invenção da Paisagem. Edições 70, Lisboa, 2008, p. 71

  2. CAUQUELIN, Anne. Idem, p. 69

 

Other Cities

 

The panorama that Clara Benfatti unfolds in one of her main series, Cidades Brancas (‘White Cities’), causes in the observer feelings that are, at times, contradictory. If the heavy labor attested by a kind of extensive filigree – formed in the manner of one of those old scenes created by traveling artists in paintings or by photographers at the dawn of this language – is the object of admiration, there is also another movement. When one takes a closer look at the work, one notices a typical modern metropolis skyline taking shape, more in the sense of the congestion and of a helpless mobility than some utopian and conciliatory metropolis, where the urban signs – much explored in art history by futurists, for example – are indications of a soothing modernity. Thus, the palimpsest to which our gaze is seduced aggregates shapeless data, and why not, monstrous. A long weekend, for example, is enough for the resident of the city of São Paulo to legitimate in body, smoke, traffic lights what Godard, for example, would have exaggerated in the dystopian portrayal of his Alphaville (1965). “It’s just that the territory is a ‘palimpsest’, it writes and draws again, continually” (1) alerts Anne Cauquelin in her compulsory A Invenção da Paisagem (‘The Invention of Landscape’).

The ability of the artist based in São Paulo is precisely in handling these poetic vectors, which are at times conflicting, such as attraction and repulsion, ostentatious display and silent introspection, manual craftsmanship and mass production, the public and the intimate (private and domestic, by extension). Benfatti is an artist ingrained in contemporaneity, and who likes to rip apart previously determined contours and to merge approaches, investigations and languages. Thus her drawing gains ground almost forcibly – while at the same time gently, since its lines and angles are tiny - and migrates to the three-dimensional, as if she were the author of a sculpture forged in physical, real, and concrete space, spreading out to its surroundings without linearity, spreading through the air without corporeity, camouflaging itself in the territory of the unseen.

At the same time, a series of drawings depicting windows of various types, together with the cut out A Silenciosa Fábula dos Objetos (‘The Silent Fable of Objects’), dimensioning an artist more closely linked to a minimum, essential and quiet dwelling. This act of being smaller in the world connects the artist to more evident aspects of contemporaneity. By drawing almost obsessively the different configurations with which a basic element of a house presents itself to the world, Benfatti seems to weave a compliment to the different personalities, subjectivities and meanings which the consumer world cannot overcome. While simultaneously displaying three-dimensional overlapping layers of tepid materiality – generating spaces installed in a zone between the concrete and the fictional – once again the artist moves towards the concept. “’I must see. This requirement presents itself suddenly, as a whole. However, it is made up of a thousand layers, juxtaposed, which even the most meticulous and well-documented historian cannot capture separately in the detail of its emergence” (2) argues Cauquelin. The universes so full of Benfatti’s overlaps therefore say a lot about our need for invention of landscapes.

Mario Gioia, July 2015

      1. CAUQUELIN, Anne. A Invenção da Paisagem. Edições 70, Lisboa, 2008, p. 71

      2. CAUQUELIN, Anne. Idem, p. 69